terça-feira, 29 de abril de 2008

Na Língua dos Melros

A selva está gelada hoje como em todo começo de inverno e as folhas estão quase que inteiramente cobertas por pingos d’água, que surgem pela manhã. Está frio. Aprumo as plumas enquanto os pequenos acordam, já piando alto como se a fome os tivesse açoitado durante todo o sono. Pio com eles. Hoje será difícil alimentá-los. O frio mais intenso que nunca os acordara cedo demais, e, sem uma mãe para acalmá-los e aquecê-los, não poderei deixar o ninho. Mas devo. Mas preciso.
Mas não se calam, os pequeninos. Os três nasceram Pretos, como eu; a quarta, única Castanha, não quebrou o ovo. E não se calam. Piam alto, piam forte, piam fome. Eu silencio. Olho à volta, disfarço, acreditando que todos entenderiam se eu quebrasse as regras uma vez apenas; uma vez ou outra, talvez, mas saberiam meus motivos. Saberiam que é começo do inverno e que acordamos cedo demais, saberiam que o Jaguar tomou a mãe Castanha e que não se pode deixar um ninho sem cuidados. Saberiam que eu não tinha escolha. A grande Mãe sabe dessas coisas, e nenhum filho padece sob elas. Por isso modifico o procedimento. Entôo a canção, a primeira do dia, pois hoje o Melro cantará três vezes. Não é a canção da Manhã, que se canta depois do desjejum e que se saúda a luz da aurora. É a canção da Noite, na qual concordamos com a treva que o crepúsculo traz e restamos em silêncio. Nós Melros conhecemos muitas canções.
Grave e lenta a melodia, reconfortante, submissa. Quer queiram, quer não, toda a selva deve ouvi-la agora, pois é dela que minha cria precisa. E todos ouvem. Quem já amanhecera se assombra, mas adormece mesmo sob o frio. Quem se ativara ergue os olhos e estranha, imaginando um aviso, e não dorme mais, agora em alerta como se fosse noite, mesmo. Afinal, também as aranhas e morcegos se acordam com minha canção, mas não abrem os olhos, pois a luz lhes aflige. Os pios cessam. Dormem os pequenos, novamente, e em dois ou três vôos tenho folhas secas para cobrir o ninho até minha volta.
A selva questiona-me quando vôo. Seria noite agora?, qual razão leva o Melro a cantar a noite em dia frio como hoje?, mas entendem, no fundo, sei que entendem, pois meu vôo é agitado e atento ao chão, ao amarelo das bananas, ao rubro dos formigueiros, ao cromado dos besouros, e assim eu vôo, eu mergulho e pouso e viro a laranja co’a fenda para cima, pois caiu-se com baque à noite e abriu-se com a queda tal qual os olhos abrem com a manhã, e cutuco com o bico e está boa e saudável, e não me privo de bicá-la para mim, e está fresca ainda e está madura e menos azeda que nas estações anteriores. E me acalmo. Sabia que a Mãe compreenderia. Aceito a oferta, coleto as bagas pensando em cada um de meus três filhotes, e tomo altura batendo asas com pressa e sem presságios.
O retorno é valoroso e tão reconfortante quanto o silêncio da fome. Ninguém acusa, ninguém pergunta, ninguém duvida. Sabem que o Melro não busca comida à noite, e eu encontrara agora e voltava ao ninho. Sabem que não é noite, mas duvidam do dia, enquanto os mais astutos aguardam, já sem confusão, e observam. Dá-se logo minha chegada, estou afoito. Acordo-os, eles voltam a piar depois de pouco, mas desta vez sentem o aroma cítrico do meu bico e de minhas penas e pedem pelo que eu trouxera. Alegro-me, e, mais de uma vez, bico a bico dou-lhes bagas, e bico a bico escuto satisfação e silencia a fome.
No silêncio da fome inflo-me e tomo voz segura, toda selva aquieta-se como se de repente prendesse a respiração. Soa a canção da manhã, rítmica, de gradativo calor e abrangência incontestável. Os feixes de luz passam, então, a invadir a selva, e as outras canções a surgir, convictas da manhã que anunciam. Termino minha canção, olho à volta. Os que amanhecem com o som agora compreendem, apesar de já saberem, e eu sei que sabiam, e os de olhar mais aguçado confirmam suas pequeninas teses e os predadores e demônios da noite aprofundam o sono; e minha prole se ergue vívida do ninho ao mundo, pois é manhã.
Tem-se um dia inteiro até que a noite exija uma nova canção; tem-se um dia inteiro até então.


Zé Eduardo Martin Roquetti

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Pois a língua dos Melros não possui escrita e nem é compreensível à maioria dos leitores. Por isso o Português.
Abraços.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

Testamento

Meu testamento fugiria aos padrões, creio.
Quer dizer, não que eu tenha pesquisado testamentos por aí; falo dos típicos, aqueles que justificam bens a familiares e amigos, e também pedidos, para que as pessoas realizassem aquilo que não deu tempo de ser feito. Tipo o trabalho pra faculdade, pro dia seguinte (mas valendo menos nota), mas não exatamente daquele jeito.
Posso fazer uma prévia?
Ok, posso.
Acho que começaria com um pedido bem simples. "Não chorem". Tá, é um negócio meio inevitável, meio impossível de se cumprir. Choro é um negócio engraçado. Mas mesmo assim eu pediria isso. Tipo, "esta é minha última morte. Deviam ter chorado enquanto eu morria em vida". Aquela vez em que eu me decepcionei. Aquela vez em que me caiu o mundo por causa de uma guria. Aquela vez em que eu não parecia mais capaz de sonhar. Por quê não choramos nessas horas, se morremos um pouco em todas? E estou sendo modesto, acreditem. Jamais morri pouco, e duvido que os outros o tenham feito. A gente morre, e morre muito. Perde um bifão da vida e nem percebe, deixa passar. Por um lado é uma maravilha, a relevância, mas por outro é até cruel - a ignorância. Não ignorem as mortes. A partir de agora, valorizem-nas; e a morte final não parecerá tão cruel. Lembrem-se que não se sabe o que há depois. "Quando se mata um homem, não se sabe nem o que está lhe tirando, nem o que está lhe dando", e isso é Byron e isso parece-me verdade. Então não chorem a morte. Chorem a ausência que se seguirá, o vazio que deixarei. É o que dói, na real, não é? Então ok, aí podem chorar. Mas não no velório. Preencham o velório (preferencialmente em minha futura casa) com as lembranças legais, e festejem a passagem. Festejem, pois onde eu estiver, estarei preparando o lugar a todos vocês, e nem por isso terei ido embora. Voltarei para onde vim, e isso significa que estarei sempre aqui, como cidadão universal que faz parte de cada partícula da Terra que habitamos. Concepção surreal, mas tá aí pra ser festejada. Bebam (sem vomitar no cadáver), toquem músicas. Preparo até uma lista. Beatles, Led Zeppelin, Pink Floyd, Yes, e as músicas que se tocam em fogueiras. Façam barulho. Deixem que o vizinho toque à porta; vocês abrirão, e ele dirá: "Que festa é essa? Façam menos barulho! Onde está o José Eduardo?", e, por favor, quero boas respostas. Tipo "Ele está ali no centro, pode ir falar com ele", ou "Opa, ele morreu. Este é seu funeral. =D". Brindem. Brindem com o vizinho. Lembrem de todas as cagadas que fiz em vida. Editem minhas poesias, lancem livros e doem a renda a algum centro maroto de assistência social. Falem mal de mim. Reúnam as namoradas e acabem com a minha honra. É isso que fazem com os mortos.
Mas usem tambores, violinos, violões, bandolins; flautas transversais. Cavaquinhos, pandeiros e faixas amarelas. Exatamente, sem choro nem vela. Sem crisântemos, cravos ou quaisquer outras. Perfumem a casa com insensos e disponham orquídeas, angélicas, jasmines e lírios do campo pela casa. Festejem. Dancem valsas.
Em memória a mim, senhoras e senhores, festejem.
Em memória à minha inabilidade com a escrita.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Da Casa de Anil

Montes exatos, mas duplos, errados
foram a base porque você quis.
Tão metódicos eram os gramados,
duvidavam - fariam-lhe feliz?

Eram nas nuvens, então, refletidos
E era o ar, então, densificado
Pois em dúvida estava envolvido:
chovia do chão, chovia do alto.

Mas mesmo assim o lugar foi regado
E ali no topo, tudo planejado,
E o quanto antes pôs-se a construir.

E mesmo em meio aos ventos gelados
Ali nos morros ergueu seu reinado
Com uma casa feita de Anil.

Zé Eduardo Martin Roquetti



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Quase dois meses sem postagens, hm? Considerando que sou o único a ler e escrever aqui, não fez falta. Esta é, portanto, uma conversa justificativa que estou a ter comigo mesmo.
A ausência aqui criou-se pela convicção de que a comunicação andava falha e a expressão intencionada inexistia. A volta deu-se pela convicção de que eu não receberia essas habilidades de um dia pro outro: deveria haver treino.
Pois bem, há novamente.

Começo esta fase com Da Casa de Anil, que trata do começo de outra fase. Os Sonetos da Casa de Anil só têm fim quando aqui admitir-se a conclusão da dita fase.
E é só.
Aguardem, portanto, mais sonetos (sem sono).

Abraços.