terça-feira, 23 de junho de 2009

suspiro, em língua de p

no meu sonho, você morria.
eu, ciente do fato, só passeava pelo cemitério.
como sempre faço.

buscava mil distrações.
estava calmo.
tinha amigos ao redor, enquanto caminhava.
era todo gramado
tinha elevações pavimentadas,
tinha provavelmente mausoléus.

os grandes salões que imagino agora são só especulação. antes no sonho não apareceram, só pensei-os aqui, lembrando que, de repente, dei-me sentado num corredor de luz manchada em tons de vinho (vinho-vermelho-escuro, não vinho-roxo).
dobrava o corredor minha avó
em prantos secos, seguida de mais familiares.
seus olhos diziam-me
"Faltou você, neto"
mas não estavam tristes.
não comigo.

cerimônia supostamente acabada, dobrei eu o corredor em sentido contrário ao da avó.
conheci os restos do velório.
mais parecia uma festa, por onde você caminhava como se estivesse vivo.
conversava como se estivesse vivo.

ignorava-me como se estivesse vivo.


e se eu te procurava, você atendia.
explicava tudo parcamente, como se tudo fosse óbvio, e eu tolo demais para tudo entender.
depois sumia.
sumia como se nada tivesse acontecido.
como se você não tivesse morrido.
como se tudo entre nós não sobrasse assim.
e eu sabia
que mesmo vivo, ali, entre toda gente,
você morrera todo em minha mente
e a morte não se pode remediar.

sumiu-se para sempre.


e n'outro sonho contei tudo a ela.
quando acordei pensei na vida dela
e não na morte do senhor.

esqueci você até esta hora de dormir
pra que você de novo me assombre
e que em sonho de novo eu aprenda
a suas cagadas não repetir.

terça-feira, 16 de junho de 2009

o homem

All that is gold does not glitter,
Not all those who wander are lost;
The old that is strong does not wither,
Deep roots are not reached by the frost.
From the ashes a fire shall be woken,
A light from the shadows shall spring;
Renewed shall be blade that was broken,
The crownless again shall be king.

J.R.R. Tolkien,
em The Lord of the Rings

a cova

Aquele gosto amargo do teu corpo
Ficou na minha boca por mais tempo
De amargo então salgado ficou doce,
Assim que o teu cheiro forte e lento

Fez casa nos meus braços
E ainda leve, forte, cego e tenso
Fez saber
Que ainda era muito e muito pouco.

Faço nosso o meu segredo mais sincero
E desafio o instinto dissonante
A insegurança não me ataca quando erro
E o teu momento passa a ser o meu instante.

E o teu medo de ter medo de ter medo
Não faz da minha força confusão
Teu corpo é meu espelho e em ti navego
Eu sei que a tua correnteza não tem direção.

Mas, tão certo quanto o erro de ser barco a motor
E insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque não vemos.


Legião Urbana
em Daniel na Cova dos Leões

os leões

eu vadio, pai do filho d'O Homem sem ser pai de fato.
não fosse carpinteiro, seria vadio.
domador de leões.

vocês leões.
quem de escravo subiu à biga e esmagou as traições,
enchendo-se das graças e milagres à distância.
quem tomou três pedras e derrubou o gigante,
para ver morrer seu reino diante da promiscuidade e desimportância.

leões que me cercam na cova, reis poetas do passado.
eu mesmo tenho juba e olhos ferinos,
eu mesmo faço cerco ao meu corpo acuado, em mais de uma face.
meus leões eu dobro num voleio de meus farrapos cansados
- vocês eu encaro, sorvo da juba d'ouro sem tocá-la,
sofro a pane de cruzar-lhes os olhos sem recuar.
judá, e quem sobre o trono de judá reinou, reis poetas;
caiam por terra que já não me importam mais.

só sobrevivem hoje meus leões, dobrados e quietos nos bolsos.
mas passear por aí
passear por aí é como andar com meus leões soltos.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

palavras como nós

como se fôssemos obra, uma obra só.
eu papel, eu caneta, eu tinta; você papel, você caneta, você tinta.
nós palavras, e nós palavras impossíveis de apagar, pois não se apaga tinta.
depois de escrita, a palavra a ninguém mais pertence.

nós palavras, como se fôssemos fruto das desvirtudes da hilda, do caio, quase sem vírgula, quase sem pausa para respirar; contínuos, éramos palavras de fôlego forte, de vontade, segredo (sem dúvida) de mesmo mote. nós palavras éramos prosa hilst, com medo dos pontos finais, com medo dos pontos sem nós (sem nós!); acontecíamos ao mesmo tempo agora presente, agora, presente, tudo ao mesmo tempo agora. nós palavras, texto natural, imoral, casual, passional - o crime que bem quiséssemos, fosse crime agir de impulso, crer na entrega e a entrega se tornar. cometido o crime, nós palavras éramos cúmplices.

toma os instrumentos
(eu papel, eu caneta, eu tinta; você papel, você caneta, você tinta)
toma a prosa
(eu papel, você papel, eu você, eu tinta, você tinta)
e nessa prosa ouve de perto quem sussurra:
"eu você, eu você, eu você - nós como palavras".
bota em verso
distribui pelos dias da semana
(da semana)
que cada estrofe um dia é
(pois é).
você é ana, eu sou zé.

então curta cada verso com calma,
que essa história de verso combina:
eu você, eu você - nós palavras de alma,
eu você, eu você - nós palavras de rima!

... que rima!, ai palavras, que rima!

uma vez fomos prosa, outra seremos verso,
uma vez somos texto, outra vez, o inverso.
acho que ponto sem nós eu não dou.
azar esse o nosso se num dia desses
o ponto conosco rimou.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

O Poeta

[...]

Sou eu! que não esqueci
A noite que não dormi,
Que não foi uma ilusão!
Sou eu que sinto morrer
A esperança de viver...
Que sinto no coração! -

Riríeis das esperanças,
Das minhas loucas lembranças,
Que me desmaiam assim?
Ou então, de noite, a medo
Choraríeis em segredo
Uma lágrima por mim?

* * * * *

Fui um doido em sonhar tantos amores...
Que loucura, meu Deus!
Em expandir-lhe aos pés, pobre insensato,
Todos os sonhos meus!

E ela, triste mulher, ela tão bela,
Dos seus anos na flor,
Por que havia de sagrar pelos meus sonhos
Um suspiro de amor?

Um beijo — um beijo só! eu não pedia
Senão um beijo seu
E nas horas do amor e do silêncio
Juntá-la ao peito meu!

Foi mais uma ilusão! de minha fronte
Rosa que desbotou
Uma estrela de vida e de futuro
Que riu... e desmaiou!

Meu triste coração, é tempo, dorme,
Dorme no peito meu!
Do último sonho despertei e n’alma
Tudo! tudo morreu!

Meus Deus! por que sonhei e assim por ela
Perdi a noite ardente...
Se devia acordar dessa esperança,
E o sonho era demente?...

Eu nada lhe pedi: ousei apenas
Junto dela, à noitinha,
Nos meus delírios apertar tremendo
A sua mão na minha!

Adeus, pobre mulher! no meu silêncio
Sinto que morrerei...
Se rias desse amor que te votava,
Deus sabe se te amei!

Se te amei! se minha alma só queria
Pela tua viver,
No silêncio do amor e da ventura
Nos teus lábios morrer!

Mas vota ao menos no lembrar saudoso
Um ai ao sonhador...
Deus sabe se te amei!... Não te maldigo,
Maldigo o meu amor!...

Mas não... inda uma vez... Não posso ainda
Dizer o eterno adeus
E a sangue frio renegar dos sonhos
E blasfemar de Deus!

Oh! Fala-me de amor!... — eu quero crer-te
Um momento sequer...
E esperar na ventura e nos amores,
Num olhar de mulher!

Álvares de Azevedo

~ ~ ~


Mas esse poema, esse post, vai pro Hugo.
Que se há alguém além de mim que compartilha o sentido dessas palavras, é o cara.