sexta-feira, 17 de setembro de 2010

rilke

O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos ("escutar e bater dia e noite"), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não são para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante.
É aí que os jovens erram com frequência, gravemente: pelo fato de eles (faz parte de sua natureza não ter paciência alguma) se atirarem uns para os outros quando o amor vem, derramando-se da maneira como são, em todo seu desgoverno, na desordem, na confusão... Mas o que deve resultar disso? O que a vida deve fazer desse acúmulo de equívocos a que eles chamam de união e gostariam de chamar de sua felicidade?


das Cartas a um Jovem Poeta,
Rainer Maria Rilke


agradecendo ao Rilke pelas palavras
e à Aninha pela indicação.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

café

quando peguei Café no colo pela primeira vez.
tremia bastante, era uma filhota muito recentemente desmamada e saía de casa pela primeira vez. não soltava pêlos, não se mexia muito.
meu avô comentava sobre como as outras duas filhotas tinham cores mais claras: "esta é mate-com-leite, esta é café-com-leite. aquela ali", olhou pra fêmea no meu colo e concluiu "é só café".
olá, Café.
decerto você diria "Café é um nome bem picareta para um cachorro, Zé" e eu concordaria com você. "é", eu diria. "bem-vinda ao meu mundo, Café".
depois de inúmeras manhãs de domingo passeando nos parques e praças daqui, em menos de um ano estaria grande o suficiente para que eu te comprasse uma coleira mais confortável e toda noite que chegasse em casa, tarde da noite que fosse, te pegaria pra passear. os domingos se repetiriam nas áreas verdes: brincadeiras já memorizadas e minha voz familiar como a de um pai, não precisaria segurar sua coleira pra te fazer voltar pra perto; eu chamava e seu retorno era iminente e desembestado como a cadela boba e carinhosa que você se tornara com o passar dos anos.
e ao passar dos anos eu deixaria meu lar e você viria comigo, maiores as suas lágrimas em eu abandoná-la que as de minha irmã mais nova em perder a mascote da casa. um espaço maior e mais aberto, uma vizinhança nova, um cachorro igualmente bobo e vira-lata pra que você se enturmasse com os teus nas redondezas. a manutenção da rotina, os banhos sofridos de sábado e os passeios noturnos. seu brinquedo favorito, renovado uma ou duas vezes a cada mês por ser comestível e muito mais saudável que qualquer porcaria de plástico.
Café, você cresceu. se algum dia teve patinhas sujas eu logo percebia e te limpava, que as patas eram a parte caramelo do teu pelo quase preto e não era possível ignorá-las sujas; não raras as vezes que você as carimbava nas minhas roupas assim que eu chegava, e era meu dever relevar - quantas vezes não te dei abraços cheio de perfumes que não eram sequer parecidos com meus cheiros?
seu rabo longo e chicoteante, sempre abanando à menor vista do dono, sua orelha ligeiramente torta e rasgada por quando defendeu a casa d'um invasor qualquer (sobreviveu parcamente àquele dia, e foi o máximo que um cão faria por mim e quando choramos juntos aquela noite fui confidente e soube acreditar que era por mim que você o tinha feito).
não sei dizer, Café, como você ficou doente ainda anos depois e ainda depois de outras mudanças. chegaram os donos de sua mãe, nesse momento, e fiz em você uns últimos carinhos enquanto você lambia com calma os sonhos que me escorriam pelas mãos. olhei você nos olhos e você piscou de leve umas vezes. saudei-a em silêncio e me despedi não sei por quanto. "tchau, Café"; e entreguei teu corpo vivo, pesando poucos dias e uns sonhos de sobra, à mão de outro que te levou embora.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

todos fazemos.

e esta noite você está no meu chá.
eu, cansado pra tentar fazer algo bonito, novo ou poderoso.
eu, querendo desabafar porque seu cheiro sobe da xícara em formato de vapor.

achei que alguma mágica ia acontecer quando eu despejasse a água fervente no copo. no fundo do vidro, partes das suas folhas secas; a coloração variava mas todo resto seu era pálido e escondia um reflexo lilás muito distante, mas ainda presente. lilás em tons de lembrança, só, que tudo era mais ou menos cinza.
lembro do mate tostado. desce da chaleira o torrente fervido e as folhas marrons sobem, descem e submergem num pequeno pandemônio aquático sob meu controle; antes mesmo do copo encher e acabar a derrama, a água já está toda manchada e escura da erva mate.
não aconteceu com você.
queria vê-la tingindo a água quente de violeta, e um violeta que perdurasse até o último gole. não houve mágica e a água mal mudou de cor quando mergulhou seus restos cinzentos.

ao fim de cinco minutos de infusão estava lá um líquido ralo e numa cor talvez até mais clara que os chás de erva-doce. coado, transposto à xícara - seu cheiro impossível de negar.
diabos. o chá mais gostoso de todos, também o mais dolorido.

a mentira: o cheiro e gosto me lembram do que aconteceu.
a verdade: a verdade é que a menor menção já me remete ao que eu (não) fiz. o resto é tortura. o resto é masoquismo.

chega em casa o pacote manufaturado e vendido em atacado com suas flores secas e prontas para infusão - seu nome, "lavanda", impresso numa etiqueta; seu outro nome, "alfazema", gravado na memória e preso a associações diretas.
e você não chegou sequer a dar flores. enxergo você no pacote ainda assim - ali está um futuro seu que nunca vamos alcançar, as flores cinzas e secas e prontas para infusão, a promessa de um perfume, a imagem das manchas lilases sob a janela, sobre uma varanda. o cheiro e gosto que vêm depois me lembram sim da época em que você era verde (e não cinza) e passar a mão pelas suas folhas deixava meus dedos cheios de uma graça sem remédio, que não saía fácil.

a metáfora:

deus, permita que eu me perdoe por ter arruinado seus menores sonhos.
é uma súplica.
você queria ser verde e lilás, e eu lhe fiz cinza.
porque todos esquecem de regar as plantas e eu me comportei como um qualquer.