quinta-feira, 25 de novembro de 2010

desculpai-me

Desculpai-me mas vou continuar a falar de mim que sou meu desconhecido, e ao escrever me surpreendo um pouco pois descobri que tenho um destino. Quem já não se perguntou: sou um monstro ou isto é ser uma pessoa?


de A Hora da Estrela
Clarice

domingo, 14 de novembro de 2010

despedida

seu cheiro no meu casaco,
seu telefone no meu bolso,
por que você não está neste elevador?

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

reflexo persistente de cabelo

Observou de coração apertado as mechas azuis da transeunte à frente se afastarem, deixando-o para trás. Ele se perdia nos próprios passos e passava a vagar, encarando as costas da estranha como fossem costas muito conhecidas, num movimento de abandono definitivamente familiar.

"Maldita moda. Maldita cor. Maldita tinta, maldita mania de pintar o cabelo", praguejou consigo e fantasiou ser o presidente daquele país, para que pudesse proibir, sob pena de morte aos dissidentes, que se tingissem os cabelos daquela maneira.

Daquele dia cresceu pouco e se tornou o mais jovem Presidente da República Federativa até então eleito. Rodeado de homens e mulheres de confiança, em seu primeiro dia como a pessoa mais importante daquele país fez com que fechassem o Senado e as Câmaras deliberativas para que então pudesse baixar o decreto que proibia, sob pena de morte, às mulheres de tingirem os cabelos com mechas azul-cobalto. Assinou o papel aliviado e botou o rosto entre as mãos, sem chorar, como quem dá fim a uma batalha há muito iniciada.
 
Foi acordado no dia seguinte pela multidão gritante que povoava a grande praça em frente ao palácio da República e que chegava na forma de um burburinho em seu quarto, no topo e no meio do prédio. Olhos arregalados e meio vazios, passos estalados até a janela, expressão afetada ao alcançar a sacada.

De seu balcão, o Presidente da República dobrava os olhos e perdia o fôlego observando os milhares de manifestantes praça abaixo, com seus cabelos de um dia pro outro longos, lisos, pretos e cheios de mechas azul-cobalto. Fraco e mole como se subnutrido pela própria vida, apreciou cada uma como fossem milhares de fotografias de alguém que ele não via há muito (pessoalmente).

Naquele dia - decidiu - cabeças haveriam de rolar.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

reflexo pálido de manhã

o sono curto por tantos anos
e hoje com isso de dormir
o tempo justo, a cada dia
...........- é inútil.

um caixote azedo que aperta a cabeça
um homem pesado que assume
um par de olhos vermelhos sobre castanho
...........- resultados inexplicáveis do descanso.

dorme tão bem, mas
onde conseguiu estas olheiras?
onde conseguiu este inchaço?
...........- tem chorado em sonhos por todas as noites.