quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Lepidoptera

Abre majestosa tuas asas de veludo
De papel camurça preto;
e deixa a noite cair.

Despeja teu pó sobre este mundo
E cega o que há de perfeito;
coloca-nos para dormir.

E dita teu feitiço mudo
co'as antenas, um encantamento
que nós não podemos ouvir.

Co'as runas do corpo felpudo
Confunde o que deve ser feito;
distorce o nosso sentir.

Teus olhos, inúteis, vão fundo
no sexo, no ninho ou no leito;
que nunca chegou a existir.

Termina, em teu vôo, com tudo:
Flutuas no ar em Sonetos
Místicos zigue-zagues e curvas sinuosas
És bruxa negra, sombria mariposa,
és ilusória, desde o nascimento.

Zé Eduardo Martin Roquetti

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Letargia

Sentado só no quarto escuro, às vésperas de qualquer coisa que se dará no dia seguinte. Ele não sabe o que escreve.
Já apagou algumas vezes o que foi escrito; na verdade, apagou uma vez só, mas isso não vem ao caso.
O sono o enebria, o cansaço o tira do sério. A contra-vontade, opositora. A inesperada, surpreendente e repentina vontade de ser um super-herói.
A dolorosa prece que se estrutura sozinha; que toma forma sem que ele queira, e que se ora por dentro, sem o conhecimento de mais ninguém - é, pois, agora revelada, como o ínfimo desejo de que as coisas voltassem a fazer sentido.
A perspectiva de antes inexiste agora.
A determinação torna-se questionável.
O tempo passado torna-se inútil, desprezível, indigno de credibilidade.
Ele bebe mais um gole de água - desejava algumas vezes que a garrafa anormalmente grande estivesse cheia de álcool, para, quem sabe, conhecer o novo.
Mas não é corajoso ou audacioso para concluir tanto; muito menos burro.
Assim, digita sob o efeito de água pura [...] e tem breves cochilos em frente à tela luminosa.
Muda de assunto. Jamais finaliza aquilo que começa, mesmo que com intenção de terminar. Jamais mantém. Jamais entrega-se a padrões, nem mesmo os supostamente benéficos.
É viciado em ninguém. Ser ninguém. De ninguém. Com ninguém.
É o nada ambulante, que se senta sonolento e escreve quando não deseja. Que desdenha da própria situação sem sequer tentar mudá-la.
Ele quem se mata diariamente. Quem morre sozinho, diariamente.
Espetado pela distância, crucificado por saudades daquilo que jamais o conteve.
Cansa-se da reflexão.
É cheio de idéias, que brotam sozinhas, mas falta-lhe paciência para ajudá-las a sair.
Elas ficam. E tudo que foi escrito também fica.
Expulsou as palavras, e definiu todo e qualquer espaço em que elas se alojaram - aqui - como o olho da rua.
A sarjeta.
Onde, em breve, ele há de se deitar...

domingo, 16 de setembro de 2007

Conto Mal-Feito da Vida Mal-Gasta

Eram tantas notas que seus olhos brilharam e sua boca abriu-se com languidez; não por ganância ou por ter algum tipo de desejo perante ao dinheiro, mas sim pelo fato daquela reunião multicolorida ser uma tangível representação de sua força de vontade. Pelos últimos dois anos ele havia economizado um tanto a cada mês, pensando na chegada deste dia de hoje, quando seus desejos seriam realizados - finalmente. Todos aqueles programas sacrificados por serem monetariamente custosos, todos lançamentos que não comprara por serem caros demais e tudo, em geral, que deixara de fazer em função daquela economia - valeria a pena, muito em breve. "Tudo valeria", pensava, enquanto dobrava cuidadosamente o bolinho de dinheiro e colocava com o mesmo cuidado em um bolso da jeans.
Já vestido e preparado como deveria, saiu de casa, não sem antes encarar a própria imagem sorridente ao espelho. Sorriso esperançoso, ansioso, acompanhando os olhos arregalados e contentes dos mesmos sentimentos. Os passos apressados atravessariam sua casa e alcançariam a rua, para, de modo tímido e desajeitado, caminharem o homem pela calçada até seu destino. O caminho mostrava-se distorcido aos olhos alegres, que buscavam em cada canto alguém que pudesse presenciar seu feito, alguém que viesse parabenizá-lo por ter finalmente chegado ali, por estar prestes a conseguir o que queria. Mas ninguém veio. As pessoas iam e vinham, muito poucas ao fim da tarde, sem nem ao menos notar o afoito rapaz que buscava a todos com seus olhos. Mal sabiam eles, os outros - era isso que ele pensava; mal sabiam eles que era seu aniversário de dezoito anos, e que sua vida encontraria sentido muito em breve. Que dois anos de sacrifício resumir-se iam em breve, quando finalmente... quando finalmente... Bem, finalmente.
Ele mesmo não aguentava mais esses finalmentes. O coração pulava como nunca antes, de tão ansioso que estava, à medida que ia chegando ao seu destino. Vislumbrou a construção que tomava parte do quarteirão, cercada por muros altos e rosados, com pinturas chamativas à mostra. O portão era grande e alto, e já se fazia aberto àquela hora, encaminhando quem quisesse entrar por um corredor também alto que dobrava-se em um ângulo que não permitia que transeuntes vissem o que quer que houvesse dentro daquele lugar. Numa grande placa e bem iluminada com neons, ao topo de um mastro negro, lia-se "BOITE - NIGHT CLUB" e o nome em francês da tal empresa. Os olhos dele brilhavam mais que o neon.
Entrou a pé, mesmo, pelo corredor, passando por diversas mulheres (ou diversos projetos de) pseudo-vestidas, que o encaravam cheias de escárnio no olhar. Algumas puxavam seus cigarros, outras coçavam-se e boa parte delas comentava algo com a companheira puta mais próxima. O corredor dava diretamente a um pequeno estacionamento feito cabines para carros, e, desse espaço mais aberto, ia-se diretamente a um prédio bem pequeno, onde estavam os quartos e o balcão principal; e da entrada até então, a ansiedade o consumia por dentro.
Passado o último sacrifício, ele encarou a mulher atrás do balcão. Mulher já madura, que envelhecia lentamente; algumas rugas, junto do olhar muito experiente e sob um bom peso de maquiagem. Trocaram olhares, ele e aquela antiga prostituta. E foram olhares significativos. Ela ergueu uma sobrancelha, ele ergueu as duas, e do bolso, o montinho de dinheiro foi direto ao balcão. Os olhos dela desceram ao dinheiro, as mãos contaram-no, e, depois de checar a quantia, ela voltou a encará-lo com pouca credibilidade. Mas, com um olhar em resposta, ele consentiu, e ela demonstrou-se mais surpresa ainda, logo sumindo-se por trás de uma cortina além do balcão. Ele ficou esperando, o corpo ansioso. O tempo compensara, pois, salva de descrições quaisquer além da seguinte, surgia por detrás da cortina a puta mais bela da região, que contornara o balcão e tomara-o pelas mãos, guiando-o pelas escadas até o andar de cima, onde entrariam em um quarto e deitar-se-iam na cama.
- Oi... Olha, meu nome é... - ele sorria tanto, tão descordenadamente, que mal conseguia falar. Ela não respondia nada, e a face, embora bela, não expressava emoção nenhuma enquanto começava a fazer aquilo que tinha sido paga para fazer.
- ... q-q... q-qual é... ei... ai... qual o seu nome?! - tentou novamente o rapaz; seria sua última tentativa naquela noite, pois não ousaria interrompê-la naquilo que tão bem fazia.
É, o famosíssimo momento chegara. A tal da Hora H. Tudo pelo que ele esperava estava ali, a realizar-se naquele instante. E assim foi feito, até que de maneira diversificada e bastante rápida, mas como nunca antes ele havia feito. Pois bem, não fizera nada disso antes; não sentira nada disso antes, nenhuma das incríveis sensações que envolvem o ato o haviam marcado anteriormente, e talvez jamais marcassem-no novamente daquela forma. Foi incrível, sensacional, único. E, como tudo que é bom, acabou.
Ainda enquanto deitados, ele buscou a mão e o olhar dela. Ela esquivou-se, sentando e começando a se vestir. O rapaz, agora crente de ser homem de verdade, insistiu, ajoelhando-se sobre a cama, logo atrás da mulher, e tentou massageá-la com as mãos. Mas ela tornou a se desvencilhar, levantando, saindo do alcance dele.
- Ei, seria legal se... sei lá... a gente marcasse algo... não é?
A resposta veio num olhar, por cima do ombro, enquanto ela vestia as sandálias, e depois, quando ela bufava e negava com a cabeça, incrédula com o que ouvia. Apressou a arrumação, por isso, e logo apertaria os passos para sair daquele quarto e deixar ali o homem com quem acabara de fazer sexo - seu cliente por algumas horas.
- Ei... mas... mas... você já vai?! - era a vez dele de ficar incrédulo, e também de não receber resposta alguma, novamente - Foi... foi muito bom, viu!, obrigado! Até logo! - foi falando, enquanto ela deixava para trás um último olhar; cheio de desprezo - ... eu te ligo...!
Ainda sobre a cama, as únicas e últimas palavras foram dele mesmo, cheias de uma esperança que acabara de morrer. Encarou a porta por onde a mulher acabara de sair. Os lençóis, o próprio corpo.
Caiu deitado na cama. As mãos cobriram os olhos para amparar o choro.



~ ~ ~



É o seguinte: qualquer semelhança com qualquer realidade não passa de mera semelhança.
Ponto.

Abraços.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

O Acorde da Ferramenta Cansada

Hoje acordo sem força no braço
direito.
E fraco assim mal seguro
E fraco assim mal defendo
aquilo que devo manter.
Mas ainda assim eu me gabo
e ainda assim minto ao mundo
e ao mundo insinuo poder.

Amanheço também com o dom
da verdade
Que guardo na ponta da língua
Que guardo na ponta da espada
- verdades que querem sair.
Tão cheias de necessidades
as guardo pois são derrotadas
por quem não as sabe ouvir.

E acordo com o corpo doído,
doente.
Voz muda, garganta ardida
Voz muda, orgulho ferido
e o choro cobrindo a visão.
Pois hei de erguer todo dia
a voz rouca, o braço moído
e o corpo, que Deus tem por mão.

Zé Eduardo Martin Roquetti


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