sexta-feira, 12 de setembro de 2008

ela tinha um anel

Sei lá, de repente batem vontades estranhas. De repente o que você quer é comemorar sem saber exatamente o quê, e se lembra que não sabe se as cervejas japonesas têm o mesmo gosto que as ocidentais. Uns trocados na carteira - já estava naquele bairro, mesmo, não custaria nada (talvez uns cinco reais) e ninguém ia realmente perguntar se eu podia ou não.
Entrei na mercearia porque é um lugar legal, limpo e bem-arrumado. As pessoas são educadas e respondem ao bom-dia, talvez não recebam muitos, não sei. Sinto-me meio suspeito, na verdade, porque sempre estou com uma mala carregando metade da minha casa nas costas, e quando você fica indeciso no comércio e tem uma mochila desse tamanho nas costas, o que se costuma achar é que você está esperando a melhor oportunidade pra roubar alguma coisa e cair fora, então eventualmente me vigiavam. Mas não encontrava as cervejas, ou quaisquer outras bebidas, na parte da geladeira. Deu que achei algumas prateleiras, mas estavam perto da entrada e fora da geladeira, portanto, quentes. Ok. Fui ver se os gyozas - feitos na hora e num balcão específico - ainda estavam no mesmo preço e no fim descobri que toda cervejinha, pinguinha e sakezinho estavam compactos, numa geladeira atrás do balcão. Cool! (literalmente)
Falando assim dou a entender que tenho uma tendência ao ácool. Não. Não tenho. Sei de mim mesmo que meus instrumentos de fuga são outros e não se confundem com uma busca leiga e interessada pelo sabor das coisas. Assim, acabei perguntando o preço de uma Heineken, porque, porra, é uma cerveja que parece natural e não lembrava o gosto puro dela. Pedi, pedi também os três gyozas que vendem a dois e cinquenta. Não vou me ater à confusão da máquina que o cara que me atendeu usou pra ver o preço dos meus pedidos; não importou na hora, não me importa agora.
- Faz três gyozas de carne suína pra mim, por favor? - A moça abriu a Heineken e trouxe um copo-taça gelado, já. (Carne suína, repeti, porque a moça que fazia os gyozas não tinha ouvido).
- Ahm, pode pagar depois...
- Ah não, só tô... contando, aqui. Vendo se tenho.
Sabia como funcionava lá. Tem uma comanda digitalizada e tudo mais, então você só paga na saída. Contava os trocos que eu tinha, de fato. Peguei a garrafa, dispensei o copo, fui sentar e beber, de pouco em pouco porque o gargalo é pequeno e eu talvez ainda não conheça as manhas que regem o mundo ébrio e as garrafas de cerveja. Nesse momento desejei o copo. "Foda-se", tive de pensar em seguida pra não estragar a água, lúpulo e malte. Não foi mais que a metade da garrafa até o pedido chegar, mas a moça não me trouxe hashis.
Fresco. Será que é frescura comer com esses palitos? É. É pose, agora eu concluo. Se eu achasse cem por cento práticos não usaria mais talheres aqui em casa. "Foda-se", tive de pensar e buscar o par de hashis no balcão. Separei-os e fui comendo. Não exagerei no molho porque a camiseta era branca, ia ser a maior merda do dia manchar uma das únicas camisetas brancas com molho de soja, e eu só ia voltar pra casa dali a umas cinco horas.
Comi. Fui pagar ainda com a garrafa e metade da cerveja em mãos. Falava com a senhora, mas outra moça do caixa também fez parte do complicado processo envolvendo a comanda e meu dinheiro.
- Seis? Deixa eu ver se eu tenho moeda, peraí.
Que foi o tempo d'eu checar se eu tinha um real em moedas pra completar com a nota de cinco e não ter de dar uma nota de dois também, entende?, e a moça falou.
- Aaah, eu também quero! Também quero tomar uma Heineken ao meio-dia.
- Ahm, ah...
Fiquei meio assim. Meio assim, tipo, alguém já tinha tirado sarro comigo quando sugeri uma cerveja no meio de outro dia. Fazia-me sentir como um bebum ilegal em miniatura. Ela estava fazendo o mesmo?
- É que eu não tenho trabalho, depois, então... posso tomar uma.
- Uh. Me indica esse seu trabalho, então.
(a verdade é um cu. principalmente quando a situação te impede de mostrar mais que uma faceta das coisas) - Ahm... é, bem, eu não trabalho. Não posso trabalhar, na real; eu estudo.
- Ah sei. Sei como é, eu faço Etapa.
- Aqui da São Joaquim?
Ela tinha um anel no anelar da mão direita, acho. E parecia ter a minha idade, mas certamente era mais velha. Quase todo mundo é mais velho que eu.
- É, a rotina é pesada e tudo mais.
- Ah sei, eu já passei por isso, já. Quer dizer, não exatamente por isso, mas, vestibular e essas coisas, sabe.
- É, precisa tomar umas mesmo.
- É, então, é isso aí.

Foi a última coisa que eu disse.
Mentira, essas últimas linhas não devem ter acontecido. Eu esqueci o que dissemos um ao outro, mas sei que a última coisa que eu falei foi bastante conclusiva e evasiva, mesmo que eu não tivesse com medo de falar com ela, mesmo que eu não estivesse assustado, e, atualmente, quisesse conversar com alguém que tinha puxado papo comigo.
De repente eu achei que pegaria mal pra ela ficar ali conversando no meio do serviço, então encerrei a oportunidade que se deu. Saí andando com a cerveja pra ir bebendo no caminho, pra que os transeuntes me encarassem e pensassem por si sós "nossa, cerveja ao meio dia. esse é vagabundo". Pra que eu pensasse que poderia ter dito: - Ahm, então, aqui não deve ser o melhor lugar pra conversar, né? Podemos, sei lá, usar algum outro jeito, tipo e-mail, telefone. "Foda-se", tive de pensar. Quando eu vi tinha ficado só espuma, e espuma pra cacete, na garrafa. A coragem é pequena e eu talvez ainda não conheça as manhas que regem o mundo.



* * *




De repente os transeuntes falam com você. Tendo jogado a garrafa fora, é claro que falam. Moça bonita, talvez tivesse a minha idade mas certamente era mais velha que eu. Quase todo mundo é mais velho que eu.
- Oi, tem algum metrô aqui perto?
- Ahm, tem sim...
Fui apontar, mas, porra, que adiantaria apontar?
- ... eu tô indo pra lá, se quiser posso te mostrar onde é.
Mentira. Mentira, não estava indo pro metrô. Estava indo pra lugar nenhum pegar um ônibus, mas não custava coisa alguma passar pelo metrô, acreditem, então me ofereci. Ela aceitou, agradeceu. Falou um pouco no celular e percebi que ela tinha um anel no anelar, da mão direita, acho. E quis saber mais.
- Estamos perto da Sé?
Eu ri. Ri por dentro, mas ri. Por fora fiquei meio embaraçado, senti a vergonha dela e a coragem, sem espuma, que ela exibia. Ou era inocência, mas eu talvez desacredite da inocência.
- É. Aqui é a Sé.
Aí eu indiquei a catedral do tamanho de vários elefantes, aquela é justamente a catedral da Sé. Atravessamos a avenida e ela se justificou.
- É que eu não ando muito por aqui, então não sei.
- Ah, tudo bem, acontece. Você é de onde?
- Daqui de São Paulo, mesmo.
Caracas. Ela deve estar pensando que eu acho que ela é um monte de coisas, entre elas, burra, desinformada. Penso de fato um monte de coisas, mas não burra desinformada. Acho. Desinformada, talvez. Mas se não teve até agora a necessidade de andar de metrô e conhecer o centro velho da cidade, tinha culpa nenhuma, e o burro era eu. Foram várias vírgulas e reticências, por vários motivos, até que falássemos de novo.
- Mas você é de onde, daqui de São Paulo?
- Zona Norte, bairro xxxxx.
- Ah. Olha, o metrô é por ali. Vamos atravessar.

- É a estação Sé?
- Sim.
- Aaah, tá. E onde fica o prédio xxxxxxxxx?
- Hmmm, sei onde é, é depois da praça.
- Nossa, já pensou se eu tivesse entrado no metrô? Eu ia ter dado uma volta imensa!
- Ia nada, cê ia perceber. Olha lá, escrito grandão: "Sé".
- Ah, sei lá, do jeito que eu sou perdida.
- ... Heh.

Agora vejam só que malandragem - depois de atravessarmos outra rua, passarmos por uma velha pregadora sem papas na língua, veio um rapaz, desses que fazem propaganda de fotos 3x4. Sabem? Não? Então.
- Vão pro prédio xxxxxxxxx? Prédio xxxxxxxxx?
- ...
- É por ali.
- ...
- Precisam de fotos 3x4?
Olhei pra ela. Eu precisava de nada.
- Não.
- Não.
- Vão pra fazer o quê?
Sei lá. Ocorreu-me de repente que eu ia fazer nada, e estava acompanhando, somente. Ela explicou alguma coisa pro cara, ele avisou que era o pavilhão azul que procurávamos e deu-nos nova direção. Seguimos.
- Que bizarro, hm?
- É.
- Ah, olha ali. É o xxxxxxxxx.
- Certeza? Só seguir ali aquele mar de gente, sem erro?
- Acho que sim.
- Ah, então tá. Muito obrigada, viu moço.
Constrangedor quando as pessoas desconhecem as relações que têm entre si e precisam se cumprimentar. A insegurança grotesca transforma o momento em algo definitivamente constrangedor. Parecia até que ela tinha medo de encostar em mim, acho que acabou se afastando um pouquinho e dando um aceno, apenas, recebendo uma resposta igual de mim. E a despedida saiu mais ou menos "Ah... então tá... Hm... (sai de perto, hesita, não sabe se dá a mão, beijo no rosto, abraço) Muito obrigada, viu moço".
Não me lembro.
Até.



* * *




De repente eu estava justamente onde eu queria estar. De repente eu sabia que aquilo era uma cena de um filme, e que essa linha que eu escrevi também é. Mas não me importou na hora, não me importa agora; jamais vai me importar.
Justamente onde eu queria estar, com os piores e mais inseguros pensamentos possíveis. É constrangedor quando as pessoas desconhecem as relações que têm entre si e de repente estão juntas num lugar-situação como tal. Na verdade a relação deve ter sido bem clara desde o início, mas gente como eu carrega consigo uma hipermetropia imaginária que impede uma visão próxima e factual dessas coisas. É fácil o olhar distante que nos encara como pessoas próximas. Difícil é tirar os olhos das estrelas, nuvens e lua, como você fazia naquele momento e sempre. Mas você é difícil. Então consegue dispensar minhas visões e determinar a realidade da relação, só nunca contou pra mim.
Talvez por isso estivéssemos ali, eu tentando te convencer que aquela mais brilhante era, na verdade, Vênus, e que aquela nuvem era um coelho, e não um peixe; você constantemente lembrando do frio, do horário, da aula que perderíamos se não nos apressássemos, fugindo das minhas aproximações e mostrando desinteresse no aconchego que eu prupunha. Desinteresse, na realidade, por aparentemente quase tudo sobre mim.
Apontava pro céu, cutucava minha testa e fazia questão de brincar, tirando e colocando o anel que tinha em uma das mãos. Tinha, tinha um anel que ficava no anelar, que me impedia a aproximação ausente de boçalidade, insistência e cegueira demasiada.
- Que horas são?
- Sete e vinte.
- A aula é daqui a dez minutos, vamos?
- Aaah, nem quero.
Mas você levantou, e iria. E me deixaria ali, e eu ficaria, se tivesse minhas bolas no lugar. Ou não. Coragem, bolas, culhões; talvez não signifique ficar deitado na grama enquanto você vai, ou correr atrás, ou abrir um jogo que não existe lá muito bem. Quando servem cerveja e não se inclina o copo, mais que a metade é espuma. Só espuma. Tudo isso é só espuma.



* * *




- Seu avô sempre foi uma pessoa que quis saber de tudo, sabe, sempre foi um homem muito interessado nas coisas, estava sempre estudando o que quer que fosse.
Os verbos estrategicamente ditos no passado indicam a ausência física do avô, morto há já algum tempo. Apesar disso, a avó estava ali, sentada no sofá, tricotando. Ela tinha um anel de ouro em cada mão, em cada anelar; se conviesse, teria nos dedos dos pés, também. Se a morte não tirou aqueles anéis daqueles dedos, imagino que nenhuma espuma tiraria.



* * *




Víamos aula.
Não era a sua aula, mas você não parecia se importar (ou saber). Parecia feliz, fazia comentários, interagia, oferecia ajuda. E qualquer um que nos visse pensaria em você sabe o quê. Tinha um anel no anelar de alguma das mãos, e fez algum comentário sobre ele. Me preocupava aquele anel, admito.
- Mas o que é esse anel?
- Um anel?
- Sei, mas... só isso? Só um anel?
- É. Só um anel.
- Ah.