quarta-feira, 20 de outubro de 2010

passarinho

Passarinho não canta,
passarinho não come,
passarinho não bebe.

Passarinho anda triste.

O que foi, passarinho?
Mudam as penas, tens febre?
Não te dou alface, alpiste,
água clara? O companheiro?...

Passarinho quieto, quieto,
nas próprias asas se esconde.

O companheiro levou-te
a voz, a garganta, o bico?

Enterraram-se com ele
no lodo negro as escalas
aéreas de trampolim,
as teclas, o arco, o violino,
e o piano de tua música?

Era dele que te vinha
a auréola, o entono, o donaire
com que a cabecinha erguias
a esfuziar azougue, prata
líquida, com volutas
e arrebescos de medalha?

Era dele que te vinha
o frêmito de ouro, o gozo
de jóia, pérola a pérola
no aveludado dos trinos?

O arrepio de carícia
longo, fino, contagioso
de lua, de cisnes, de água
descendo, em fio, a colina?

Era dele que te vinha
tudo isto, o sol, as estrelas,
o brilho do canto, as quentes
auroras na areia, ao vento,
as espigas ondulando,
musgos nascendo nas pedras,
campos abertos, batidos
de lavoura, nas soalheiras?

Era dele que te vinha
aquele vinho furtivo
na espessura da folhagem,
verde-jalde chuva, arco-íris
de paina tênue, delícia
de malvas brotando, sombra
de cílios no rosto, espera
do que vem trêmulo e próximo?...

Passarinho quieto, quieto.



A poesia é de Henriqueta Lisboa; a imagem é capa de um disco (ruinzinho) chamado Transatlanticism.

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